quinta-feira, 22 de agosto de 2013

CURRÍCULO E TRANSDISCIPLINARIDADE NA ESCOLA BÁSICA

(Publico mais alguns textos que publiquei, de tempos em tempos, no Facebook)
 
11.     Já que estou propondo um ensino transdisciplinar para a escola básica, onde o conteúdo não será preestabelecido, vale a pena perguntar se algo deveria ser prescrito para todos e, como a resposta parece ser “sim”, verificar que conteúdo seria este. É claro, por exemplo, que o ensino básico tem uma função alfabetizadora e que esta alfabetização deve alargar-se para muitas outras esferas além da linguística. Precisa ter a dimensão científica (com clareza sobre o método científico e a pesquisa), religiosa, geográfica, política, econômica, artística (literária, cinematográfica, musical, de pintura, de escultura), histórica, matemática, do trabalho, do direito... Estas coisas não devem ser estudadas como disciplinas. O uso de projetos de estudo que fiquem dentro de uma área, sem ser trabalhada como disciplina, parece prudente, pelo menos no começo do ensino fundamental; antes de tudo, talvez unicamente, a linguagem; mas, cada vez mais, o estudo seria desencadeado com projetos de estudo que abarcassem, a partir da base da alfabetização, questões em duas grandes dimensões: a natureza, por um lado, e a sociedade e a cultura, por outro. Teríamos, então, grupos de alunos estudando, por exemplo, os peixes, a proliferação de pragas, as eleições, o lixo, as aves, os dinossauros, a remuneração de vereadores, os gastos do País em saúde, os direitos das minorias, a democracia, o salário mínimo... sem que estes temas estivessem ligados a uma disciplina. Parece importante assinalar que, depois da alfabetização, não é necessário que todos os alunos estudem os mesmos temas; mais do que isto: que os professores não podem ser especialistas em alguma disciplina, mas do tipo que chamamos de pessoas cultas. Sobre forma de trabalhar nos projetos e sobre professores, incluindo a presença de especialistas, falarei adiante.
12.     Incluo aqui, na ordem ou fora dela, um comentário a uma pergunta muito pertinente da Professora Pâmela Filipini. Ela pergunta: “O que pensas da organização seriada dentro do nosso sistema de ensino”?
  1. Embora fosse falar disto só mais adiante, é oportuno dizer, desde logo: séries não têm nada a ver com um ensino transdisciplinar, onde não haverá um conteúdo com crescentes dificuldades, mas estudos direcionados a um fim, o de abertura ao crescimento contínuo em saber, em ser, em conviver. A seriação foi inventads no século dezoito, a partir da industrialização que propunha a produção em série; no século dezenove ela se firma de tal modo que passamos a ter a ilusão de que este é o único modo de fazer escola. Infelizmente, na educação escolar temos o dom de estragar as boas ideias que surgem: os ciclos por idade foram desvirtuados e eram, certamente, um passo rumo a uma escola que ajudasse crianças e adolescentes a crescerem até o limite de suas possibilidades. Embora não fosse ainda o ponto de chegada, a utilização de ciclos para constituir as turmas de estudo poderia nos levar, gradativamente, a ideia de ter grupos de alunos, reunidos conforme suas idades, trabalhando, orientados por um professor, como se estivessem apenas vivendo do modo que viveram quando aprenderam a caminhar, a sorrir e a falar. Obviamente teremos que conversar, mais adiante, sobre avaliação que não poderá ser de notas, de aprovação ou de reprovação, mas diagnóstica como pais e mães fazem quando seu filho está crescendo. Hoje as escolas já podem diminuir as desgraças da seriação através de uma nova visão sobre o que é importante para todos e sobre a reprovação.
13.     Precisamos uma escola, de nível superior, especializada em preparar professores. Falo aqui do que denominarei “professor de referência”. (Falarei, adiante, de professores especialistas que terão trabalho esporádico dentro da escola). O professor de referência será um profissional que coordenará os trabalhos de uma turma de alunos, de forma transdisciplinar. Será dele a responsabilidade de cuidar que os alunos trabalhem em todos os campos julgados necessários pelo referencial da escola. Conforme as circunstâncias e a conveniência, ele acompanhará ou não a mesma turma em dois ou mais anos seguidos.
Não basta preparar bacharéis – especialistas. Mesmo que se lhes dê uma tintura de Didática, na faculdade de educação, eles serão especialistas em alguma pequena faixa do saber humano e tentarão passar aquele saber aos alunos; mesmo que o façam de modo competente, estarão limitando os horizontes de crianças e de adolescentes. Não adianta pedir que trabalhem com interdisciplinaridade porque não saberão fazê-lo e a própria estrutura escolar não lhes permite isto. Nem sonham que, na educação geral, própria para todos, precisamos da transdisciplinaridade. Não terão conhecimentos suficientes em Psicologia, em Ética, em Meio Ambiente, em Sexualidade... e, sobretudo, não saberão de que se está falando quando se lhes disser que devem participar nos planos globais da escola e que devem elaborar seus próprios planos de sala de aula com intencionalidade, conhecimento da realidade dos alunos e programação clara e precisa. Indicarei linhas gerais desta preparação no número 14.
14.     Para o ensino básico transdisciplinar é necessária uma escola com a finalidade exclusiva de preparar professores. Digo, de início, o que é decisivo: todos terão a mesma formação, independentemente da idade de seus futuros alunos; como veremos, a prática deles vai ser diferente por causa das circunstâncias em que irão atuar e não por causa de teorizações distintas; ao planejamento (de que vou falar muito, mais adiante) caberá organizar a tensão entre a realidade desejada e a realidade existente; uma especialização para a alfabetização linguística talvez possa ser pensada; mas, consultando textos especializados no assunto, não me parece, agora, que isto seja necessário. Estas escolas terão quatro grandes linhas de estudo.
1.     O estudo do mundo da natureza e do mundo da cultura e da sociedade; sem especializações disciplinares, os futuros professores aprofundarão, ao máximo, sua relação com tudo o que os ajude a entender os fenômenos da natureza – tudo o que existe e acontece sem a intervenção humana – e o que lhes permita compreender os processos culturais e influir neles. Mesmo que nenhum conhecimento específico seja obrigatório, terão que ser homens e mulheres “cultos”, para quem nada do que é humano fique totalmente desconhecido. A vida é o conteúdo, tanto a que se relaciona com o mundo natural, como a que diz respeito ao artístico, ao ideológico, ao ético e moral, ao espiritual e religioso, ao sanitário, ao econômico, ao jurídico... nunca com especializações pontuais; elas até poderão acontecer, nos campos mais queridos de cada um e, por isto, mais estudados, mas nunca buscadas para todos nem para servir para “dar aulas”. Observe-se, desde logo e com toda a insistência possível: estas pessoas não estarão se dedicando com tanta seriedade a estes estudos para, depois, no seu trabalho, “transmitir conhecimentos” a seus alunos. Professores terão que dizer, muitas vezes: “Não sei bem isto! Se quiser(em), vamos investigar.” Eles e elas serão, sobretudo, coordenadores de estudo, isto é, orientadores, conselheiros e instigadores de suas futuras turmas. Vale a pena repetir a sabedoria de Paulo Freire: “Ninguém educa ninguém; ninguém se educa sozinho; todos nos educamos no relacionamento, mediatizados pelo mundo da natureza e da cultura”. No ensino médio, onde, provavelmente, se devesse pensar que cada aluno pudesse eleger campo do saber para ir aprofundando e se organizassem turmas respeitando estas escolhas, os mesmos professores e professoras seriam os coordenadores; não se trata mais de adultos que conhecem algum conteúdo e o passem às crianças e aos adolescentes, mas adultos especializados em ajudar pessoas a se educarem e a aprenderem. (Os outros campos de estudo – Planejamento; Pedagogia e Didática; Psicologia – serão analisados a seguir).
15.     Ainda duas observações sobre a formação de professores, no campo de estudos de que falávamos antes. A primeira é que, para implantar um processo de ensino transdisciplinar, não é preciso descartar os professores atuais. Na medida em que se vai passando, de série em série, do sistema atual para o novo sistema, os atuais professores receberão cursos para poderem desempenhar suas funções; além disto, como a implantação precisa ser gradativa, haverá tempo para que professores de disciplina assumam este novo perfil e, mais do que isto, talvez seja recomendável manter especialistas para ajudarem os professores de referência em algumas necessidades (veremos isto). A segunda é de que a preparação de professores, dentro deste campo de conhecimento sobre a natureza e sobre a cultura, deverá ser realizada com livros, jornais, revistas, rádios, televisão, filmes, vídeos, internet... e não com “aulas” do “professor”. Este professor de futuros professores será, também, um coordenador dos trabalhos e não alguém que sabe tudo e tem que transmitir o que sabe a outras pessoas; o conteúdo tem que ser completamente atualizado a cada tempo curto.
2.     O segundo campo de estudos, para a formação de professores, será o da Psicologia. Não poderá ser uma Psicologia apenas acadêmica; poder-se-ia dizer que não pode ser uma “psicologia pura”, mas uma psicologia que, mesmo firme teoricamente, seja aplicada ao campo da educação, da pedagogia e da didática. Oxalá o professor tenha, também, algum conhecimento psicanalítico; não para ser analista ou psicólogo terapeuta, mas para compreender minimamente os fenômenos que vai enfrentar em sua prática; poderá, com isto, encaminhar alguns de seus alunos de maneira melhor e, até, modificar seu trabalho em proveito de todos.
16.     O terceiro campo de estudo para o futuro professor – não estou usando uma ordem de importância – é o planejamento. O planejamento é uma ferramenta e, por isto, parece algo secundário; pouca gente – só especialistas – dá atenção aos pincéis e às outras ferramentas que serviram Da Vinci; contudo, elas foram de extrema importância: sem elas não teríamos algumas obras de arte fascinantes. O lavrador terá mais resultados à medida que tiver mais ideias sobre agricultura e à medida que tiver mais e, sobretudo, melhores ferramentas para cultivar a terra e para cuidar de suas culturas. Por mais que alguém fosse exímio conhecedor das lidas da terra, terá menos resultados se sua única ferramenta forem as mãos. Um professor, em seu trabalho pessoal com os alunos e, sobretudo, no seu trabalho coletivo para direcionar todo o esforço educativo da escola, precisa das ideias sobre educação e sobre pessoas, mas, também, da ferramenta que é o planejamento, com seus conceitos, seus modelos, suas técnicas e seus instrumentos. Não basta fazer bem as coisas que o senso comum pensa que a escola deve fazer; é preciso fazer as coisas certas, indicadas e decididas pelo trabalho coletivo. Quer dizer: não basta ter uma escola bonita que “passa” um conteúdo; é preciso definir resultados, por meio de uma visão estratégica e participativa, e persegui-los com ações, atitudes, regras e rotinas, programadas para um médio prazo. Este não pode ser um estudo de algumas horas; será necessário o estudo prolongado de, no mínimo, cem horas, a fim de alcançar o domínio de uma corrente de planejamento que permita segurança, clareza e precisão na prática.
17.     Por fim – a ordem é arbitrária – o outro campo de estudos é a Pedagogia e a Didática. Digamos que o Planejamento e a Pedagogia responderão às perguntas “o que (vou) vamos fazer” e, sobretudo, “para que (vou) vamos fazê-lo” e que o Planejamento e a Didática irão responder “como”, “com que”, “quando”... (vou) vamos fazê-lo. Assim, a Didática vai trabalhar a respeito do “fazer bem” aquilo que se tem de fazer e a Pedagogia, a respeito do “fazer as coisas certas”, ou seja, fazer aquilo que tem sentido e, sobretudo, aquilo que tem relevância social e pessoal. Planejamento, Pedagogia e Didática precisam estar sempre conectados, interligados, para abranger o médio e o curto prazo, o operacional e o político-social. Quase não se estuda mais Didática: preocupados com o tecnicismo, os professores de Didática fugiram do estudo de técnicas, instrumentos e processos necessários ao fazer pedagógico e se refugiaram em algumas críticas, algumas lições de Sociologia da Educação e outras questões afins; o planejamento estudado é aquela infame folhinha com “objetivos, conteúdos, procedimentos...” Mais: os pedagogos inventaram que o planejamento deve ser flexível e, com isto, de certo, querem dizer que a gente planeja e, depois, faz aquilo que tiver vontade ou puder. Na verdade, esta estória da flexibilidade foi inventada para convencer os professores a “planejarem”, pois, com isto, eram liberados para “fazer de conta”. Claro que há um contexto real nisto: é o fato da dolorosa consciência (talvez semiconsciência) dos educadores de que tudo já está planejado (decidido) e a única coisa que o professor pode fazer é incluir ou excluir algo na operacionalização. A Pedagogia e a Didática não podem ficar discutindo grandes pensamentos se não derem conta destas tarefas simples de rejuvenescer estes processos, para devolver (talvez possibilitar), ao professor, o tomar para si o planejamento social, político e operacional do fazer escolar.

Nenhum comentário:

Postar um comentário